segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

REPENSANDO A FAMIGERADA POLARIZAÇÃO

 

Tirinha de Caran D'Arche

Tenho fartas razões para crer que "a unidade em questão política é uma exceção. A polarização é a regra". Se um povo está unanime em suas escolhas políticas, e em seu pensamento, há algo muito errado com esse povo. E razões temos de sobra para temermos mais um clima de profunda unanimidade do que o seu inverso.
A grande mídia fala do clima de polarização que se evidenciou no Brasil e no resto do mundo a partir de 2014 e intensificou-se com as eleições dos ditos "populistas de extrema-direita" como algo sem precedentes históricos.
Há exatos 129 anos, iniciava-se um dos momentos mais polarizados da história do Ocidente, no afamado affair Dreyfus (1894-1906). A situação de polarização era tão intensa que os franceses foram divididos em anti-dreyfusard e dreyfusards. Não havia facebook e as modernas ferramentas digitais que facilitavam o arrebanhamento e envolvimento das massas no conflito. No entanto, o assunto gerava divisões tão profundas quanto a que presenciamos nesses últimos anos.
No centro daquele impasse, um capitão inocente, injustamente degredado em uma das ilhas mais inóspitas da terra por alta traição. A esquerda lhe tomou a defesa, e a direita, a antipatia.
Caran D'Arche, um cartunista famoso da época, descreveu em sua sátira o clima de divisão. Em uma tirinha de destaque no Le Figaro, tradicional jornal francês, uma família ceia harmoniosamente na primeira cena. Na segunda, eles se estapeavam. A legenda explicava tudo: "Ils en ont parlé" (eles falaram do assunto..." O assunto era o caso Dreyfus.
A mesma sátira poderia retratar fielmente o Brasil às vésperas das eleições presidenciais de 2018 e 2022, assim como os EUA, a França, a Argentina, a Inglaterra ou qualquer país ocidental no século XXI.
Ao cabo de alguns anos, o conflito estava resolvido, e a feliz reabilitação do Capitão Dreyfus foi ignorada. Michel Proust, retrata aquela França polarizada nas décadas seguintes no seu volumoso Em Busca do Tempo Perdido. O caso Dreyfus estava completamente sepultado... E uma França polarizada deu lugar a uma França apática.
Algumas décadas depois, na vizinha Alemanha, ascende ao poder Adolf Hitler, em uma Alemanha unida e despolarizada.
Erik von Kühnelt-Leddihn, em uma descrição fabulosa do clima político alemão antes da ascensão de Hitler, nos revela uma Alemanha onde seu povo nunca esteve tão unido em suas opiniões.
A França tinha tudo para ser a sede da tirania que se verificou na Alemanha. O affair Dreyfus inaugurou no país um clima de anti-semitismo, maniqueismo político e sectarismo... E poucos notaram que exatamente aquele clima de polarização poderia explicar a frustração daquela possibilidade.
O perigo de ocorrer o que ocorreu na Rússia, na Alemanha, era mais fácil em uma sociedade unida, linear e irmanada na mesma ideologia do que em seu inverso. Um clima de grande unanimidade, ao contrário do que nossas mídias modernas divulgam, é tão perigoso quanto um de polarização intensa. Ao passarmos em revista as grandes sociedades as vésperas de seus ingressos no totalitarismo, não encontramos ali um clima de polarização. Pelo contrário, encontramos um clima de profunda unanimidade, e as minorias cada vez mais acuadas.
Minha tese é que, é mais fácil uma tirania ser instaurada em uma sociedade unida, do que em uma polarizada. Não é fácil atrair, agradar ou dominar um povo polarizado. Um povo unanime em suas posições é mais fácil ser dominado por um hábil demagogo com pretensões totalitárias do que seu oposto.

sábado, 22 de outubro de 2022

A Ética de Max Weber e as eleições de 2022

 


Max Weber consagrou no vocabulário político os conceitos de "Ética de Convicção" e "Ética de Responsabilidade". A primeira diz respeito a conduta movida por princípios, independente das circunstâncias e das consequências. A segunda, já diz respeito as ocasiões em que nos vemos obrigados a prescindir de nossos princípios por causa das circunstâncias e das consequências que afetam diretamente o bem comum.

Aquilo que se julga correto do ponto de vista ético, por vezes e de forma excepcional, pode ter consequências eticamente erradas. A mentira — por exemplo — um vício, torna-se quase uma virtude, quando através dela, um alemão ético esconde a verdade a um nazista sobre judeus que abriga em seu porão. Imagine que, na recusa em eximir-se do dever da verdade, um sujeito permita a morte injusta de inocentes? Eis o caso em que, o sujeito se compromete com a consequência da convicção, e não com a responsabilidade do ato decorrente dela, e vice-versa. No caso citado, o sujeito, ao mentir, está considerando a ética como um meio, e não como um fim. 

O mesmo ocorre quando, o sujeito que em nome da justiça social deflagra uma ação incendiaria contra uma ordem opressora, sem calcular a destruição e morte inocente decorrente de sua ação. O único ponto a sua vista é a justiça social, as consequências destrutivas são ignoradas ou minimizadas.

Quando o agir ético não produz um bem, ela deve ser mitigada ou mesmo, renunciada. Max Weber, no entanto, não quer dizer que os princípios morais sejam inválidos, mas que do bem nem sempre surge apenas o bem.

Não compactuar com o mal, por vezes, traz consigo a grave responsabilidade de havê-lo permitido em um grau mais elevado através de formas colaterais.

Em casos de eleições, onde a liberdade do povo está em jogo, novamente, esta ética se impõe.

Pode se alegar que dentre as escolhas disponíveis, nenhuma seja reta eticamente. Logo, na ausência de bem, e na iminência de um mal maior, não exista outra saída a não ser escolher o mal que seja menos destrutivo.

O momento atual é aquele em que a ética de responsabilidade nos impõe uma escolha em vista do bem comum; uma escolha que pode nos levar a prescindir muitas de nossas convicções.

Eis o caso do pretenso neutro. Ele se vê confrontado com a possível eleição do político mais corrupto da história deste país, com claras tendências ditatoriais, vindo na esteira de grave cerceamento de liberdades e censura, e, ainda, com incontáveis parceiros para auxiliá-lo nesta tarefa, mas, sua convicção anti-bolsonarista o leva a neutralidade, para não compactuar com nenhum mal.

Não se põe em risco o bem comum e o destino de uma nação em nome de uma pontual hesitação moral. Hesitar diante deste momento, pode ter consequências irreversíveis e fatais.

É essa circunstância que o sociólogo alemão descreve, ao sentenciar: 

A  nenhuma  ética  é  dado ignorar o seguinte ponto: para alcançar fins “bons”, vemo-nos, com frequência, compelidos  a  recorrer,  de  uma  parte,  a  meios  desonestos  ou,  pelo  menos, perigosos, e compelidos, de outra parte, a contar com a possibilidade e mesmo a eventualidade de consequências desagradáveis, E nenhuma ética pode dizer-nos  a  que  momento  e  em  que  medida  um  fim  moralmente  bom  justifica  os meios e as consequências moralmente perigosos.

(A política como vocação, Max Weber) 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

DEMOCRACIA: A ORIGEM DA INSTABILIDADE POLÍTICA NO OCIDENTE


 

         Há exatos 139 anos, Henrik Ibsen, um tanto quanto distante dos grandes centros democráticos mundiais, demonstrou através da dramaturgia uma verdade que tantos filósofos já tentaram expor através de raciocínios mais sofisticados e menos dramáticos: “O maior inimigo da verdade, e também da liberdade entre nós, é essa coisa terrível que recebe o nome de maioria” (Um Inimigo do Povo). E as razões disso, já deveriam estar suficientemente claras a todos. O homem excelente, sábio, criterioso e capaz, é sempre uma minoria. Enquanto os estultos, sempre foram a maioria. Portanto, colocar o poder nas mãos da maioria é colocar nas mãos dos idiotas!

Até mesmo o documento mais popular e sagrado no Ocidente não deixou de atestar esta verdade: "Stultorum numerus infinitus est" (O número dos estultos é infinito - Eclo 1, 15). Uma afirmação que Ibsen vai refazer a seu modo: “O que é a maioria? Quem é a maioria? Se pensarmos nesta cidade, no país ou no mundo inteiro, veremos com clareza que os imbecis formam nele uma maioria esmagadora... E mesmo que o diabo queira, o direito não pertence à imbecilidade, pertence à inteligência”. No Brasil, esta relação intima de Democracia e Inépcia era consagrado nas palavras de Nelson Rodrigues: “Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas, hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina”. Esta verdade o levará a controversa afirmação de que “toda unanimidade é burra”. A sabedoria, a inteligência, o critério, a perspicácia, o talento nunca foram bens democratizados! Sempre foram bens restritos a uma parcela muito pequena da humanidade. O homem moderno possui grande dificuldade em entender esta verdade, especialmente aquele movido pelo espírito revolucionário que nas raias da sombria Revolução Francesa passou a apregoar a urgência de uma igualdade entre os homens que só existiu no campo teórico. Nesta sanha revolucionário chegou-se à tragédia moderna da ineptocracia. Onde os melhores são relegados ao ostracismo enquanto os piores são exaltados e elevados aos grandes postos de poder.

Sendo a democracia, o governo da pior parte do povo, como se poderá esperar que em uma democracia produza grandes e sábios estadistas? É neste sentido que Mencken diz que “um político criterioso, numa democracia, é tão inconcebível quanto um assaltante honesto”.  Mas Abyssus abyssum invocat[1] a democracia tende a se (ou nos) encaminhar para abismos bem mais sombrios e profundos.

        Diante de tudo que fora exposto, salta-se imediato a interrogação: para onde nos levará a Democracia Moderna? Para o mesmo lugar que ela, em qualquer uma de suas formas, sempre nos levou: à guerra. Mas não uma guerra nos moldes clássicos, com armas e bombas, mas uma guerra branca; uma guerra plebiscitária, onde a mais insignificante afirmação será submetida ao juízo da massa.  

“O que é verdadeiro, justo e belo não é determinado pelo voto popular. As massas por toda parte são ignorantes, míopes, motivadas pela inveja, e fáceis de enganar. Os políticos democráticos devem apelar a estas massas a fim de ser eleitos. Aquele que for o melhor demagogo vencerá. Quase por necessidade, portanto, a democracia, guiará para a perversão da verdade, justiça e beleza” (Hans-Hermann Hoppe)  

A democracia, bem observou Kühnlet-Leddihn, é o governo da pior parte do povo. E nesta lógica, como esperar que o inepto eleito pela maioria governe com sabedoria? Na nescis, mi fili, quantilla prudentia regitur orbis?[2] A massa ama os jecas, e os coloca no poder, e deles espera grande habilidade na condução das coisas complexas do Estado. Revoltando-se quando isso não ocorre. Culpando a tudo, exceto o sistema que os permite chegar ao poder. Eis a grande estupidez da democracia.


[1] Um abismo chama outro abismo” (Salmo 41, 8)

[2] “Não sabes, meu filho, com que pouca sabedoria é o mundo governado?” Expresssão do conde Axel Oxenstjerna (1583-1654), extraída de uma carta do conde a seu filho.


quinta-feira, 30 de abril de 2020

A Lógica do Aborto segundo Bernard Williams



Esse tem sido um dos textos mais discutidos nos últimos anos quando se evoca a questão do aborto nos meios filosóficos. Nessa disputa, o grande contributo de Williams, talvez tenha sido a simples conclusão de que nessa questão: dificilmente pró-vidas e pró-aborto  chegarão a algum acordo por vias dialéticas. As questões centrais da disputa são distintas para ambos, e atingem alturas inalcançáveis e intoleráveis para cada um dos lados,. Evidentemente, não há quem exima as observações de Williams de cair em reducionismos, e em certos aspectos, ser tendênciosa, mas, antes de tomar qualquer posição mais segura sobre elas, convém ler o que Williams disse sobre o assunto.



A LÓGICA DO ABORTO
Bernard Williams, Essays and reviews – 1959-2002
Título Original: The logic of abortion, BBC Radio 3 Talk, Listener (1977)


            Quero abordar algumas das questões morais e filosóficas envolvidas nas controvérsias atuais sobre o aborto legalizado. O embaraço que as pessoas sentem em relação a esse tema e a profunda discordância que se obtém entre pessoas diferentes são do tipo que convidam à uma reflexão filosófica e, de fato, muito foi escrito por filósofos sobre o assunto nos últimos anos, tanto aqui quanto nos EUA. Embora não tente ocultar minhas próprias opiniões, o que tentarei aqui, principalmente, é separar e apontar alguns dos principais tópicos desta discussão, em vez de apresentar um caso.
            Das muitas questões importantes sobre o tema do aborto eu não discutirei nada. Além de algumas questões práticas importantes, há também algumas questões morais que terei que deixar de lado. Por exemplo, se é justo que as mulheres achem mais fácil fazer um aborto em alguns distritos do que em outros ou como podemos conciliar o direito de uma mulher, de acordo com a lei, de fazer um aborto com o direito de um médico de não realizar uma operação com a qual ele discorda moralmente... Devo deixar essas questões de lado. Vou considerar apenas algumas das questões mais gerais levantadas pelo princípio do aborto.
            Uma das coisas a ser dita sobre esse debate, a princípio, é que ele não é, em nenhum momento, um debate sobre religião. É, porém, um fato que, entre os que se opõem ao término deliberado da gravidez, muitos são cristãos e, em particular, católicos romanos. Mas os pontos de vista que eles trazem sobre o assunto não são pontos de vista exclusivamente católicos romanos. Você não precisa ter crenças religiosas para ser contra o assassinato, e não é peculiar aos católicos classificar o aborto como assassinato. Como as questões não estão essencialmente relacionadas às crenças religiosas, não farei nenhuma referência especial à religião a partir de então.
            O argumento moral mais breve contra o aborto é o que acabei de mencionar ––  que o aborto é, simplesmente, um assassinato. Essa linha de argumentação muito tradicional dirá que assassinato é a eliminação deliberada de um ser humano inocente. É exatamente isso que é o aborto; logo, ele é errado. Vamos chamar isso de "argumento do assassinato". É um argumento muito simples. Para quem o oferece, isso parece parte de sua virtude –– é uma marca de sua verdade, que qualificações sofisticadas são projetadas apenas para evadir-se dela. A outros olhos, sua extrema simplicidade parece ser trazida apenas para assumir as respostas para todas as perguntas importantes antes que se comece a examiná-las.
            Entre aqueles que querem quebrar a tênue superfície do argumento do assassinato, existem, é claro, muitas abordagens diferentes. Elas podem ser úteis, penso eu, em dois campos. O primeiro campo compartilha uma certa crença com o próprio argumento do assassinato: que o ponto central aqui é uma questão definitiva, no sentido de que o ponto importante reside em definir a que classe de seres a regra contra a morte deliberada se aplica e se o feto pertence a essa classe. Essa abordagem concorda com o argumento do assassinato no método, tratando a questão como uma questão legal sobre a aplicação de uma lei, embora discorde, é claro, sobre qual deveria ser o veredicto. O segundo campo é composto por aqueles que rejeitam o argumento do assassinato e querem fugir completamente desse tipo de debate.
            A principal questão de definição tem sido se o feto é – dentro dos termos da lei moral contra o assassinato –, um ser-humano ou não. De certa forma, a resposta a essa pergunta parece ser 'sim' e, de fato, obviamente, 'sim'.
            O feto é, afinal de contas, um ser vivo e não pertence a nenhuma outra espécie. Mas então nos deparamos com o fato familiar de que o feto não é, até certo ponto, um ser-humano formado e, mesmo depois desse ponto, não é um ser humano totalmente formado. Se alguém busca esse tipo de consideração, pode-se chegar naturalmente à conclusão de que quando o feto é viável é que ele é propriamente um ser humano pleno; e traçar a linha neste ponto, obviamente, produzirá uma política de aborto mais permissiva do que o argumento do assassinato originalmente previu.
            Se o argumento do assassinato vai insistir absolutamente na humanidade do feto antes da viabilidade –– de sua humanidade, ou seja, no sentido relevante como deve ser tratado –– então, certamente, produzirá uma política de aborto surpreendentemente conservadora. Se você considera um ser humano separado, já nascido, considere, por exemplo, alguém já crescido ao qual seria geralmente aceito que não se pode matá-lo apenas porque ele contraiu alguma doença incapacitante ou porque sua mãe corre o risco de morte ou ferimento se ele não for morto; e como o argumento do assassinato é insistir na igualdade da humanidade de todos os seres humanos, ele não poderia permitir o término nem muito cedo, mesmo nos casos em que a deformidade ou incapacidade do bebê seja indicada, ou, cause sérios danos a mãe.
            O argumento do assassinato, então, no uso do conceito "ser-humano", parece produzir uma política de aborto muito permissiva ou uma política absolutamente rígida negativa: uma política permissiva se "ser-humano" implica viabilidade, e uma negativa, se não. Nesta segunda versão, rigidamente negativa, o argumento está usando um fato biológico indiscutível --- que o feto é um membro em desenvolvimento da espécie humana --- para fazer todo o trabalho, enquanto muitos acham que seu problema parte desse fato e não pode ser simplesmente resolvido referindo-se a ele.
            Uma pergunta de definição diferente surge se alguém aplica a proibição no assassinato não a seres humanos como tais, mas a pessoas. Mesmo que o feto seja um ser-humano, parece fácil negar que é uma pessoa, onde isso implica faculdades de comunicação, relações com os outros, consciência de um tipo bastante complexo e assim por diante. Alguns filósofos argumentam que não é o ser-humano, como tal, apenas determinado biologicamente, que devemos nos preocupar particularmente, mas sim com as pessoas; e o feto ainda não é uma pessoa.
            O problema com isso -- ou melhor, o que eu acho um problema, como os filósofos em questão parecem bastante despreocupados com essas consequências --- é que, se o feto ainda não é uma pessoa, o bebê recém-nascido também não é; nem, se os requisitos de personalidade forem sofisticados o suficiente, as crianças pequenas serão pessoas. Além disso, o senil e outros adultos em uma condição defeituosa serão, nesse tipo de exibição, “ex-pessoas” ou “sub-pessoas”. Certamente, aqueles que pensam dessa maneira insistirão em outras regras com relação a não-pessoas e, sem dúvida, nos incitarão a não causar sofrimento desnecessário a qualquer coisa sensível. Mas se a falta de qualificação nas apostas da pessoa é suficiente --- como este argumento o faria ---, para eliminar restrições à morte do feto, é provável que seriam suficientes para remover as restrições de matar outras pessoas também, e os resultados dessa linha serão bastante abrangentes
            Existe uma falha profunda na noção de pessoa, conforme usado nessas conexões. Parece uma questão de tudo ou nada. Se uma dada criatura é uma pessoa ou não, mas, que o termo acaba significando apenas que a criatura exibe, até certo ponto --- ao que parece, uma extensão arbitrária --- algumas características psicológicas e sociais que se encontram em uma escala móvel.
            Ao contrário da questão apresentada de grau de desenvolvimento físico do feto, questões levantadas pela escala variável de características psicológicas surgem por todo o lado: com as antigas, por exemplo, como mencionei.
            A abordagem da "pessoa" no aborto apresenta, talvez mais do que qualquer outro, o perigo da ladeira escorregadia, pela qual as decisões sobre aborto deixam alguém sem maneira de resistir a outras políticas relacionadas a morte e assassinato, sobre a qual alguém teria os maiores escrúpulos para tratar. Alguns filósofos duros diriam que isso apenas mostra que não devemos ter escrúpulos em relação a essas políticas, como infanticídio, supressão do senil e assim por diante. Acho pouco claro, no entanto, o que deveria dar a seus argumentos mais autoridade conosco do que o nosso senso de humanidade, como é chamado de maneira significativa.
            Outra linha de argumentação, no entanto, faz um esforço para se afastar a questão definitiva e pertence ao que chamei, anteriormente, de segundo campo daqueles que resistem ao argumento do assassinato: o campo daqueles que tentam fugir da questão de definir o feto, seja como ser humano ou pessoa. Eles podem dizer: ‘Vamos concordar, se você preferir, que o feto é um ser humano, e matar o feto é um caso de matar um ser humano. A questão é: em que circunstâncias se justifica fazer isso’.
            Uma maneira de tentar responder a essa pergunta, novamente, evoca a ideia de um direito. Ele pergunta se podemos pensar em circunstâncias análogas o suficiente à situação em que o aborto está em questão, para nos ajudar a decidir se poderíamos ter o direito de matar um ser-humano nessa situação. Um argumento ousado sobre essas linhas foi apresentado pela filósofa americana Judith Jarvis Thomson. Ela sugere que, se alguém acordasse um dia e se encontrasse amarrada a outro ser humano adulto, com seus sistemas de vida dependentes dos seus, para que a única maneira de se livrar dele fosse matá-lo, então poderia ter o direito de matá-lo --- mesmo se alguém fosse apenas parcialmente responsável por estar lá. Apresentei o exemplo de maneira muito simples, sem a elaboração impressionante e assustadora da senhora Thomson, que torna mais plausível do que talvez eu já tenha feito, que alguém teria o direito de matar esse incubo.
Mas mesmo se alguém estivesse convencido de que tinha o direito de matar o incubus, é difícil ver como essa conclusão poderia simplesmente levar ao caso do aborto. Uma diferença entre os casos é que a gravidez é normal e não esquisita. Outra é que, por si só, dura apenas nove meses. Outra é que, por ser normal e normalmente ter problemas com um bebê, ele tem sentimentos e reações que não podem ser associados ao caso esquisito do incubo. Essas diferenças não são todas da mesma maneira no que diz respeito à questão do aborto, mas, na minha opinião, desencorajam a ideia de que teremos muito conhecimento dos direitos e dos erros do aborto, considerando o que podemos dizer sobre direitos nessas situações imaginárias --- situações que podem ter alguma semelhança estrutural com a situação da gravidez, mas são, ao mesmo tempo, estranhamente diferentes dela.
            Isso traz à tona uma questão que vem nos pressionando gradualmente a todo tempo: se a gravidez, a situação em que o aborto está em questão, é suficiente como qualquer outra coisa para que possamos obter respostas sobre ele por analogia em outras situações. Embora a abordagem de definição fosse diante do problema de que o feto não é exatamente igual ou diferente de um ser-humano existente independentemente, o argumento por analogia moral enfrenta o problema de que a gravidez é ao mesmo tempo altamente familiar e também muito diferente de qualquer outra situação.
            Existe uma escola de pensamento que, de qualquer forma, está melhor posicionada em reconhecer esse fato do que os outros que mencionei. Esta é a abordagem utilitária, que considera a questão inteiramente em termos de consequências, sendo as consequências medidas em termos de felicidade e infelicidade. Essa abordagem não precisa se envolver nas questões de definição; nem acha útil pensar em termos de direitos. Que ela não precisa se preocupar com os problemas de definição vem claramente quando se reflete que, se pudermos pensar adequadamente nas questões sociais em termos de consequências, devemos, em geral, ser capazes de pensar em termos das consequências de várias políticas para pessoas meramente possíveis, pessoas que podem não existir em absoluto. Ao pensar em políticas de controle de natalidade e de população, por exemplo, precisamos pensar em como as coisas seriam para as pessoas que, se essas políticas forem adotadas, nunca serão concebidas. Ainda mais, poderíamos pensar no possível bem-estar de alguém que, se a gravidez terminar, nunca nascerá, e não importa para esse argumento consequencialista como o feto é classificado.
            Aqueles que sentem fortemente que o feto é um ser humano real, com direitos reais, obviamente rejeitará a abordagem utilitarista, que atribui pouco peso à questão de saber se este é um ser-humano real e, em geral, não está muito preocupado com direitos. Os utilitaristas tendem a considerar a linguagem dos direitos como uma maneira obscura e inútil de discutir em assuntos mais bem considerados à luz das consequências gerais. Se rejeitarmos a visão de que o feto é inquestionavelmente um ser humano que tem direitos como qualquer outro --- e sugeri, anteriormente, que as consequências de aceitar isso podem ser muito conservadoras --- concordaremos, nessa medida, com os utilitaristas na questão do aborto (embora possamos não concordar mais com eles) geralmente em seu desinteresse por direitos). Mas mesmo aqueles que concordam até agora com os utilitaristas podem muito bem ter outras preocupações com a abordagem utilitarista. O utilitarismo prossegue o suficiente seu estudo das consequências?
            Obviamente, em um assunto como o aborto, devemos nos preocupar não apenas com as consequências de cada caso em particular, para a mãe e o filho em particular, se ele nascer. As consequências mais gerais de ter certos tipos de leis e práticas também surgem. Aqui, é valido perguntar em que tipo de sociedade a prática do aborto, em uma base ampla e liberal, se encaixaria; que perspectivas gerais a acompanhariam naturalmente; que atitudes em relação ao nascimento e à matança você teria que ensinar aos jovens se eles vivessem facilmente em uma sociedade assim. Além disso, ao fazer esse tipo de pergunta, precisamos olhar para uma gama mais ampla de valores do que o utilitarismo permite --- valores que vão além da felicidade ou, de qualquer forma, envolvem uma concepção mais profunda da felicidade do que o utilitarismo geralmente admite fazer.
            A situação que temos agora, parece-me, é que essa ampla série de perguntas é mais caracteristicamente levantada pelos oponentes ao aborto irrestrito, que respondem prevendo uma sociedade indiferente à vida humana e aos valores humanos se o aborto for amplamente sancionado. Os que estão do outro lado geralmente parecem indiferentes às questões de como uma determinada prática exige uma perspectiva e um conjunto de valores adequados, e qual seria essa perspectiva, no caso do aborto. Eles exortam as misérias particulares dos casos particulares, que são fortes o suficiente, mas isso, frequentemente associado à ênfase na liberdade individual, não atende às ansiedades do outro lado. Assim, cada um desses oponentes sente que o outro lado é indiferente ao que mais deveria ser cuidado. Isso leva a algo característico dessa controvérsia: que cada lado honestamente considera o outro como insensível.
            Claramente, a questão maior deve ser levantada. Que tipo de sociedade seria esta que se acostumou completamente à instituição relativamente liberal ao aborto? Que tipo de vida se passa com isso? Ameaçaria outros valores, como os direitos do senil de não serem arrumados? A questão deve ser levantada, mas não vejo por que a resposta a ela deve ser hostil à uma política liberal de aborto. Eu apontei anteriormente, para o fato de que a situação da gravidez, a situação que levanta a questão do aborto, é nitidamente diferente das outras, em particular das que envolvem vida e morte. Este não é um problema que precisa convidar a ladeira escorregadia --- mesmo que possa fazê-lo facilmente se for tratada de maneira incorreta. Um contexto social em que as leis liberais do aborto são efetivas e facilmente aceitas pode não ter que ser aquela em que haja indiferença geral à vida humana. Se é realmente possível, a longo prazo, ter uma sociedade que combina a aceitação plena de instituições de aborto liberal com atitudes humanas em relação a coisas como nascimento, morte e assassinato, depende, em parte, se é realmente possível para a maioria das pessoas, sem auto-engano ou brutalidade, sentir que a morte de um feto é algo basicamente diferente do assassinato de um ser humano separado: sentir isso, não apenas pensar. Se isso é possível para a maioria das pessoas que não pretendo saber.
            Mas há uma evidência significativa sobre o assunto que não parece ser frequentemente mencionada: que há uma diferença entre a morte de um feto no início da gravidez e a morte de um ser humano separado.
Esta é uma diferença, acima de tudo, na experiência das mulheres. Um genuíno existe uma distinção psicológica para a maioria das mulheres em relação ao aborto espontâneo: para a maioria das mulheres, abortar aos dois ou três meses não é a mesma experiência que um natimorto ou um bebê que morre nas primeiras semanas. Falo da diferença emocional ou psicológica, não apenas da óbvia diferença física, apesar de que ela própria, sem dúvida, contribui.
            Se existe essa diferença em relação ao aborto espontâneo, não é bom, na questão do aborto induzido, teorias avançadas ou medos que envolvem a consequência de que a diferença não deveria existir, que aborto espontâneo e natimorto deveriam parecer os mesmos. No entanto, muitas teorias morais sobre o aborto parecem ter essa consequência.
            Este é um ponto sobre a experiência das mulheres. No final, esta edição só pode voltar à experiência das mulheres. Isto não é porque suas experiências são a única coisa que conta. É porque suas experiências são o único guia realista e honesto que temos sobre qual é o fenômeno genuinamente único do aborto, em oposição ao que moralistas, filósofos e legisladores dizem que é. Conclui-se que a experiência deles é o único guia realista sobre os quais teremos as consequências mais profundas de nossas atitudes sociais em relação ao aborto

domingo, 26 de abril de 2020

O Riso dos Ignorantes





      O que é o cômico? Muitos filósofos se impuseram essa interrogação e forneceram incontáveis respostas a ela. Para Aristóteles, a comédia seria apenas “uma imitação de caracteres inferiores”, O que inspirou em Stendhal sua visão do cômico como a mera “convulsão física produzida pela visão imprevista de nossa superioridade sobre outra pessoa qualquer”. De fato, nesta definição reside parte do sentimento de superioridade estampado no rosto de quem ri de um palhaço, por exemplo. A presença do palhaço não inspira temor, e isso torna o riso mais fácil. O palhaço é o último sujeito, diante do qual, alguém se sentiria inferiorizado. Para Schopenhauer, o cômico nasce de “um desacordo lógico entre uma ideia e seu objeto”, enquanto para Freud, o cômico seria a “percepção súbita da significação sexual sobre a forma simbólica”. Kant, por sua vez via o riso e o cômico como “a súbita redução de uma expectativa a nada”. Reação que só seria alcançada quando grande expectativa por um fim quase certo é frustrado com um desfecho inesperado. Para mim, o cômico reside em tudo que é incomum; que desconcerta as pessoas por uma troca fortuita do que é convencional por algo fora do comum. É jocosa a nossos olhos um homem vestido com folhas de bananeiras, por ser incomum um homem se vestir com folha de bananeira. Porém, não seria cômico se todos se vestissem com folhas de bananeiras. Por esta razão, se um homem do século XIII se encontrasse com um do século XXI, um riria dos modos e vestes do outro. Portanto, aqueles que são objetos de nossas gargalhadas hoje, poderão não o ser amanhã, enquanto nós, com nossos costumes e crenças supostamente superiores poderemos ser objeto das gargalhadas das gerações futuras por rirmos de um gênio.
As grandes ideias possuem essa peculiaridade, elas são objetos de chacota dos que a não compreendem. Assim aconteceu com muitos gênios que em seus tempos, tiveram suas ideias e seus nomes ridicularizados. Embora, passados algum tempo, a época que os ridicularizou acabou por ser ridicularizada. Quando Edson apresentou a ideia de termos “luz elétrica” através de lâmpadas, a proposta suscitou muitas gargalhadas. Como seria possível algo que imitasse a luz do sol, ou iluminasse nossas noites? As velas não são boas o suficiente?” Uma nota de 1878 de um Comitê do Parlamento Britânico chegou a menosprezar tanto o povo americano por conta das ideias de Edson, que dizia em um trecho: “Essa ideia pode até ser boa o suficiente para nossos amigos que vivem do outro lado do atlântico, mas é indigna da atenção de homens práticos ou científicos". Curiosamente, Edson aplicou a mesma chacota de que fora alvo a Nicola Tesla, quando este apresentou sua proposta de "correntes alternadas". O mesmo ocorrera a Carlyle que, as vésperas da sangrenta revolução francesa, alertava seus confrades em um banquete sobre os perigos das ideias de Rousseau que estavam amplamente difundidas na sociedade francesa e fazia grande número de discípulos. Os alertas de Carlyle suscitou riso entre os descentes. Algum tempo depois, alguns dos que estavam naquele banquete estariam com as cabeças fincadas em postes.

    É próprio dos ignorantes rir do que não conhece. Para o ignorante tudo que foge ao seu campo de experiência e conhecimento não é digno de atenção. Esta postura se verifica nos povos mais primitivos como os sentineleses, mas também em indivíduos que vagam pelo mundo civilizado e são completamente conformados com o pouco conhecimento que dispõe e, com essa conformidade, se fecham a tudo que os confronta. Todavia, ridicularizar o gênio sem ouvi-lo pode nos acarretar danos irreparáveis e um destino cruel. Nossa época, que julgamos tão adiantada, poderá ser objeto no futuro da mesma chacota que hoje dedicamos à épocas pretéritas. Nada é tão certo quanto isso. Se outros tempos tiveram esta sorte, por que o nosso seria dispensado?

sábado, 25 de abril de 2020

Por que nossas leis não funcionam na prática?




            Teoricamente, o adolescente é a "vaca sagrada" do sistema jurídico brasileiro. Ao menos no papel. Ele não pode ser preso, mas internado, no máximo. Não pode sofrer tratamento cruel ou degradante; seja o menor ato que se aproxime disso, o autor da violação poderá ser punido com o máximo rigor da lei. Seu atendimento e reivindicações possuem certa proeminência. Sua proteção goza de prioridade absoluta. Tudo isso, ao menos na lei. No entanto, apesar de toda essa proteção legal, em 2007, na cidade de Abaetetuba (Pa), uma menina de 15 anos foi PRESA por pratica de pequeno furto. Foi colocada em uma cela masculina com cerca de 20 detentos, onde foi estuprada por 26 dias de forma continua. Isso sob a ciência e complacência da juiza local CLARICE MARIA DE ANDRADE, que ao final do ocorrido, teve como punição APOSENTADORIA COMPULSÓRIA. 
Algum tempo depois, em 2017, a opinião pública foi novamente sacudida por outro episódio igualmente escabroso envolvendo crianças. Em uma performance "artística" no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o artista Wagner Schwarts, totalmente despido, interagia com crianças, que em algumas ocasiões o tocavam. O episódio grotesco suscitou ondas de protestos, enquanto o desembargador que avaliou o caso, não viu nada além de mera apresentação artística, e nas reações populares, uma grande "histeria". A apresentação poderia muito bem ser enquadrada como crime, por violar o art. 240 do ECA. No entanto, ficou por isso, até evaporar de nossa memória. Por outro lado, alguns anos antes, quando o menor Roberto Aparecido Lopes Cardoso, o champinha, matou a facada o estudante Felipe Caffé, e estuprou sua namorada por sete dias consecutivos, a degolando no último dia, todos os representantes dos direitos da criança e do adolescente entraram em ação e todos os seus direitos e privilégios foram devidamente aplicados, segundo todos os critérios do ECA.  

Em todo esses processos descritos foram violados, pelo menos, uns 10 direitos da criança e do adolescente e transgredidos uns 20 artigos do ECA e do CPB, o que acarretaria aos envolvidos, no mínimo a perda do cargo ou prisão por algumas décadas. Isso não aconteceu. 

Apesar dessas falhas gritantes de nosso sistema, há quem tenha a coragem de erguer a legislação brasileira para se opor a alguma espécie de violação de direitos? Há quem se fie na lei para fazer cumprir seu direito? No Brasil, infelizmente, as coisas não funcionam assim. Os próprios agentes da lei costumam desvirtuá-la a seu belprazer.
A legislação brasileira tem se provado um faz de conta inenarrável em sua história. Se tudo funcionasse como determina o papel, viveríamos no melhor dos mundos. Mas o problema não está nas leis. A má aplicação das leis é um poderoso argumento para a fragilidade de nossas instituições. As leis são inúteis quando não há um sistema que a faça cumprir.

Para entrarmos nos eixos, não precisamos de mais leis, mas de uma reestruturação completa de nossas principais instituições. Isso seria impensado dentro das posssibilidades legais, mas tudo indica que nos encaminhamos irremediavelmente para esta reestruturação completa, só não sabemos de que forma (cruenta ou incruenta) ela se processará e em que forma elas ficarão após o processo. Mas de uma forma ou de outra, teremos que passar por isso.
O que virá pela frente:
- Nova Constituinte?
- Dissolução de Instituições Fundamentais?
- Criação de novas instituições jurídicas?
- Guerra sangrenta de facções?
Tudo isso está no cardápio. Não é previsão, é prognóstico. Quanto ao texto inicial, apenas servi-me deste exemplo para ilustrar a fragilidade e falha de nossas instituições na aplicação das leis das quais deveriam ser guardiães.

terça-feira, 24 de março de 2020

A Crise de Criatividade na Modernidade



Alexander von Humboldt (pintura a óleo de Eduard Ender, 1856) Foi um dos mais fecundos autores da modernidade. Sua produção é quase incontavel



           A educação antiga, que resumidamente tratamos aqui, possui aspectos tão extraordinários que nos surpreende ainda mais ao compará-la com a pedagogia moderna. Seus maiores representantes: Aristóteles, Platão e Sto Tomás de Áquino, eram tomados por tal criatividade que só um milagre poderia nos explicar uma produção tão vasta e profunda.
       O maior dos gênios da antiguidade (Aristóteles), lançou as bases da Lógica, Dialética, Silogística, Metafísica, Filosofia, Política, Moral, Retórica, Poética, Física, Biologia, Botânica, História, Zoologia, Meteorologia, Astronomia, Geologia, Psicologia, Medicina, Economia, Ciências Humanas e a lista vai às alturas... A sua obra é gigantesca, contando-se mais de 600 que lhe são atribuídas. A seu mestre, Platão, foram atribuídas pouco mais de 30 obras, embora, se admita que a extensão desta produção seja mais vasta. Aos mestres da Patrística, a produção literária também impressiona. Ao maior deles, Santo Agostinho, são atribuídas 113 livros, 270 cartas e cerca de 500 sermões. E ao maior dos mestres medievais, Sto Tomás de Áquino, é atribuída uma obra quase incontável, com efeitos perenes no pensamento ocidental.

         Como fora possível aos antigos desenvolver uma vida tão prodigiosa e fecunda de estudos em uma época onde até o “papel” que se utilizava para imprimir o resultado dos estudos era escasso? Eis uma pergunta que permeia este estudo sobre a grande epifânia de sabedoria que se deu na era socrática, no auge da patrística e na era medieval, e misteriosamente arrefeceu nos tempos modernos. Há controvérsias, por certo, mas tudo deve ser feito em face da conclusão lógica de que hoje colhemos as conclusões de interrogações e descobertas que se iniciaram há muitos séculos. Será que teríamos a ciência que hoje vislumbramos sem os grandes mestres da antiguidade e da Idade Média?

      À medida que os tempos avançavam e se aproximava a tão estimada modernidade, as criações intelectuais diminuíram notavelmente. Um dos últimos exemplos de elevada fecundidade intelectual no século XX, se observou no escritor inglês Gilbert Keith Chesterton que produziu  mais de 100 livros, centenas de poemas, 200 pequenos contos, 4.000 ensaios. Além deste autor, poucos no século XX e XXI chegaram próximos a esta marca. E além da grande derrocada no número das criações literárias e filosóficas, diminuiu absurdamente a qualidade destas criações. O que estaria acontecendo com a genialidade humana?
     
      Alain nos dá uma pista para esta crise de criatividade: “O homem só conta com aquilo que ele consegue por si de acordo com o método severo, e os que recusam o método severo nunca valerão nada” (Considerações sobre a educação) Em outras, palavras, o autor francês quer nos dizer que o excesso de facilidades que dispomos na era tecnológica estagna a potência criativa. Alguns que chegaram ao ponto de renegar a capacidade de dedução lógica, exigirão de imediato uma prova mais concreta do que falo. Evidentemente, eles são incapaz de fazer um exame mais apurado da questão por mera observação ou negam essa possibilidade de conhecimento. Mas, pensamos, essas notas poderão ser objetos de reflexões mais profundas posteriormente. 

       Em suma é notável que o progresso parece conter este paradoxo, à medida que ele avança, mais os esforços reflexivos e calculistas do homem diminuem. Ou seja, o preço do progresso é um certo regresso do homem.
A calculadora nos dispensou da tarefa de calcular; os computadores dispensaram o conhecimento da gramática na escrita e até do esforço e acuidade na pesquisa; as máquinas fotográficas tornaram banal a pintura realista; as máquinas começaram a diminuir os esforços braçais do homem e tendem a diminuir qualquer esforço intelectual também. Mas, e depois? Quando houver uma máquina que não só calcule e escreva, mas pense e decida pelo homem? Seria esse o objetivo final do progresso: a regressão do homem e perda de sua autonomia para a máquina? Se ele já não sabe calcular porque uma máquina calcula por ele; não sabe escrever porque uma máquina escreve por ele... E quando não souber mais pensar porque uma máquina pensa por ele? Houve um tempo em que o homem calculava, escrevia e pensava a partir de seus próprios esforços, sem legar essas atividades à uma máquina. Por certo, neste tempo, o homem era um pouco mais racional. Todavia, não se entenda que estou negando o valor das máquinas, estou, simplesmente, questionando se os benefícios compensam as perdas.  


REPENSANDO A FAMIGERADA POLARIZAÇÃO

  Tirinha de Caran D'Arche T enho fartas razões para crer que "a unidade em questão política é uma exceção. A polarização é a regra...