domingo, 25 de agosto de 2019

A era das massas



Nada nos parece tão certo quanto o fato de vivermos na era das massas. A tudo apela-se a seu juízo; até mesmo para decidir o que é certo e errado; como se ambos dependessem de consenso da maioria. Mas, a princípio, cabe fazer uma importante distinção entre “povo” e “massa”, que para alguns autores, trata-se do mesmo fenômeno.

Todos fazemos parte de um povo; mas nem todos fazemos parte de uma massa. Podemos lutar por anseios legítimos de um povo, sem necessariamente aderir a ação das massas. A luta de um povo pode ser consciente ou não, a luta das massas é sempre inconsciente. Porém, em alguns momentos a ação das massas e os anseios do povo, veem-se tão próximos, que acabam por confundirem-se. Por isso, é importante definir suas linhas divisórias com precisão cirúrgica.

Segundo Plínio Salgado: “A massa é um conjunto informe de indivíduos, enquanto o povo é um conjunto de pessoas, independentes e harmoniosamente dispostas, executando suas atividades próprias, todas tendentes àquele objetivo do Bem Comum que a cada componente da associação humana particularmente favorece, no sentido de alcançar o seu próprio objectivo.” [1] Observação semelhante fez o papa Pio XII, ao chamar a uma de “multidão amorfa” (a massa) e ao outro, simplesmente, de “povo”. A este último, notou o Papa que este, “vive e move-se por vida própria”; enquanto o outro, “a massa”, é por si, inerte, e “não pode mover-se senão por um agente externo”. “O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõe, cada um dos quais - é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias convicções.  A massa, pelo contrário, espera uma influência externa, tornando-se brinquedo fácil nas mãos de quem quer que jogue com seus instintos ou impressões, pronta a seguir, vez por vez, hoje esta, amanhã aquela brincadeira.”[2] Penso, porém, que a massa advenha do povo. O povo é a entidade que está acima da massa, e nele podem ser encontrados tanto a massa como as excelências.

Para Hannah Arendt, “o termo ‘massa’ só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente, devido a seu número ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicado de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto”[3] Todavia, a grande afluência das massas nos processos políticos modernos, nos faz pensar, como elas podem ser neutras ou politicamente indiferentes, como  diz Arendt? No entanto, nota-se que as massas, embora, participem do processo político, não o fazem com a devida consciência. São movidas por uma mera paixão, ou arrastada pela sensação de poder que sentem ao fazer parte de uma maioria. Gritam em uníssono, com as turbas, as palavras de ordem; empolgam-se com a sensação de unanimidade, mas, no fundo, toda aquela aparente adesão, é simplesmente superficial, a partir do momento que verem o líder demagogo que as incita perder o apoio da maioria, voltam-se, sem pestanejar contra ele. O apoio das massas é sempre enganoso, e os líderes demagogos parecem ignorar este fato. Não é nada imprevisível que as mesmas massas que hoje aclamam um líder popular, amanhã peçam sua cabeça. 

Mas, como se dá essa grande reviravolta? Em geral, o processo é simples: há uma grande expectativa não satisfeita que gera uma grande tensão social. Alimentar as expectativas das massas, especialmente com promessas utópicas, costuma ser um caminho fatal. A promessa de um mundo novo, de paz e fraternidade, em geral, culmina com o advento de seus opostos, o que gera nas massas, traídas por falsos ideais, um ressentimento incurável. Por isso, os demagogos, com frequência, terminam apedrejados pela massa que um dia os aclamou.





[1] Plínio Salgado. A reconstrução do homem. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, p. 11.
[2] Radiomensagem, Benignitas et humanitas, 24 de dezembro de 1944
[3] Hannah Arendt, As origens do totalitarismo, III parte, Cap. I

*trecho do livro por sair A era das massas

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