domingo, 16 de junho de 2019

A nudez na arte


Davi  de Michelangelo


            Qualquer indivíduo comum que analisa “O Juízo Final” (Il giudizio finale) de Michelangelo presente na Capela Sistina, se surpreende com o fato de os mais sagrados personagens de nossa fé serem nele representados sob a mais fria nudez. E, perplexo, tal telespectador se interrogaria: “Como fora permitido que o sagrado fosse representado de forma tão “despudorada”? Como pode toda essa nudez figurar no “santo dos santos”, onde canta o canône da Missa: Lavabo inter innocentes manus meas, et circumdabo altare tuum, Domine? O papa Clemente VII, ao chamar Michelangelo para dar “cores e vida” à parede da Capela Sistina não pôde ver o resultado final da obra que durou cerca de sete anos para ser concluída, mas seu sucessor, Paulo II, a acolhera com grande entusiasmo e não vira nada de sacrílego ou despudorado no afresco –– nem os Papas subsequentes ––, de modo a seguirem-se mais de 40 pontificados sem que nenhum deles reprovasse aquela obra.






         Todavia, 32 anos após a conclusão do Juízo Final, um pintor veneziano chamado Pedro Veronese resolveu seguir os passos de Michelangelo e inovar na representação das cenas sacras. Quando então finalizava sua obra mais famosa –– uma pintura intitulada “Banquete na Casa de Levi”, destinada ao refeitório da Basílica de São João e São Paulo ––, por volta de 1573, teve que comparecer perante o Santo Ofício para prestar esclarecimentos sobre a “falta de decoro e irreverência” em sua obra. Veronese ficou estarrecido e evocou no processo a aprovação do Papa ao “Juízo Final” de Michelangelo, onde a nudez era tão friamente exposta.

            “Em Roma, dizia Veronese, na capela do Papa, Michelangelo representou Nosso Senhor, Sua Mãe, S. João, S. Pedro e o tribunal celestial; e representou nus todos estes personagens, incluindo a Virgem Maria, e em várias atitudes não inspiradas no mais profundo sentimento religioso”.

           Um argumento que fora imediatamente contraposto pelo inquisidor: “Não entendes que na representação do Juízo Final, em que é um erro supor que são usadas roupas, não havia nenhuma razão para as pintar?” Um detalhe que fez Veronese repensar de imediato sua obra: ela era desprovida de sentido, nascida apenas do desejo de inovação.

           Michelangelo utilizava a nudez com um sentido profundamente espiritual; Veronese a utilizava sem qualquer razão justificável. Michelangelo representara o homem como ele está diante de Deus, “infeliz, miserável, pobre, cego e nu!”, conforme expressa o Apocalipse (Apoc 3, 17). E tal artifício fazia parte de uma fabulosa tradição chamada na Renascença de nuditas. E elas eram representadas sob quatro formas.

            A primeira delas, a nuditas naturalis, evoca a condição natural do homem, aquela de que fala o Gênesis: “O homem e a mulher estavam nus, mas não sentiam vergonha disso” (Gen 2, 25); e aquela nudez em que o homem deixa o mundo, que São Paulo se refere nos seguintes termos: “Pois nada trouxemos a este mundo, e dele nada levaremos” (I Tim 6, 7).

            Isto porque o homem não possuía a visão corrompida para ver o corpo nu como um fim para a sua existência, um objeto a ser consumido, mas um puro reflexo do amor de Deus, do dom criador, enfim, a condição natural do homem, que este perdeu após sucumbir as artimanhas do demônio. Após a queda, o homem escondeu-se, pois sentia vergonha de sua nudez. Insere-se também nesta categoria a Vênus de Botticelli, que embora não transmita valores cristãos, reflete a realidade primeira de todo homem.


           A segunda forma de nudez foi chamada nuditas temporalis, (nudez temporal) que é a condição inevitável do homem, que este jamais pode fugir, e que as roupas que cobrem sua nudez não podem desfazer, e são apenas acessórias diante do perigo que o homem tornou-se para si mesmo, e que seu corpo não é mais um objeto sacralizado a seus olhos, mas apenas um “corpo de morte” como chamara S. Paulo.

            O terceiro estado humano representado na arte é a nuditas virtualis (nudez virtual ou virtuosa) a nudez das virgens, dos anjos, representações da inocência e da pureza. Os anjinhos barrocos são um exemplo desta nudez na arte. Um despojamento das vaidades da vida, aquela a que faz referência como sua vida o Pazzo d’Assisi com se seu lema: “Seguir nú, o Cristo nú”.  

E a ultima das nuditas, é a nuditas criminalis (nudez criminosa) a do despudor, das paixões desregradas, da condição decaída do homem. A nudez que torna a arma do homem para roubar os olhares que são devidos exclusivamente a Deus.


             Portanto, a exploração da nudez que a arte moderna utiliza como ponta de lança em suas incursões de irracionalidade, não é nada inovador, tão pouco algo seu, mas antes a destruição de uma tradição que explorou a nudez com finalidade muito mais elevada. Essa perversidade com que a arte moderna trata o corpo, não poderia ser chamado de arte, mas, antes de tudo: atentado violento ao pudor, pois não se diferencia em nada dos atos criminosos praticados por qualquer pervertido.

        O que se percebe na arte moderna é antes uma obsessão pela veleidade, pelo lado mais baixo e repugnante da natureza humana... Os seus excrementos. A arte moderna possui atração pela sujeira! Ela é cacrófaga, como dizia Salvador Dalí -- cuja obra, também, não escapava da acusação de certa veleidade. No seu ato "inovador" e transgressor, Marcel Duchamps poderia expor, em vez de um mictório, uma colher, uma panela, uma telha, uma mesa e tantos outros objetos que iriam chocar da mesma forma, mas ele escolheu um mictório, reserva de dejetos humanos. Da mesma forma, Manzoni, poderia expor latas cheias de licor, de manteiga, de saliva, mas sua escolha foi de encontro aos excrementos fecais. Na peça “os macaquinhos”, os “artistas” poderiam estar introduzindo o dedo em qualquer outra cavidade do corpo, ouvidos, narinas, umbigo, boca, mas eles acharam mais conveniente enfiá-los no ânus. Não há sentido algum, ou mesmo, utilidade, nesses atos, apenas o desejo de chocar sem  qualquer esforço razoável.


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