Tirinha de Caran D'Arche |
Tenho fartas razões para crer que "a unidade em questão política é uma exceção. A polarização é a regra". Se um povo está unanime em suas escolhas políticas, e em seu pensamento, há algo muito errado com esse povo. E razões temos de sobra para temermos mais um clima de profunda unanimidade do que o seu inverso.
A grande mídia fala do clima de polarização que se evidenciou no Brasil e no resto do mundo a partir de 2014 e intensificou-se com as eleições dos ditos "populistas de extrema-direita" como algo sem precedentes históricos.
Há exatos 129 anos, iniciava-se um dos momentos mais polarizados da história do Ocidente, no afamado affair Dreyfus (1894-1906). A situação de polarização era tão intensa que os franceses foram divididos em anti-dreyfusard e dreyfusards. Não havia facebook e as modernas ferramentas digitais que facilitavam o arrebanhamento e envolvimento das massas no conflito. No entanto, o assunto gerava divisões tão profundas quanto a que presenciamos nesses últimos anos.
No centro daquele impasse, um capitão inocente, injustamente degredado em uma das ilhas mais inóspitas da terra por alta traição. A esquerda lhe tomou a defesa, e a direita, a antipatia.
Caran D'Arche, um cartunista famoso da época, descreveu em sua sátira o clima de divisão. Em uma tirinha de destaque no Le Figaro, tradicional jornal francês, uma família ceia harmoniosamente na primeira cena. Na segunda, eles se estapeavam. A legenda explicava tudo: "Ils en ont parlé" (eles falaram do assunto..." O assunto era o caso Dreyfus.
A mesma sátira poderia retratar fielmente o Brasil às vésperas das eleições presidenciais de 2018 e 2022, assim como os EUA, a França, a Argentina, a Inglaterra ou qualquer país ocidental no século XXI.
Ao cabo de alguns anos, o conflito estava resolvido, e a feliz reabilitação do Capitão Dreyfus foi ignorada. Michel Proust, retrata aquela França polarizada nas décadas seguintes no seu volumoso Em Busca do Tempo Perdido. O caso Dreyfus estava completamente sepultado... E uma França polarizada deu lugar a uma França apática.
Algumas décadas depois, na vizinha Alemanha, ascende ao poder Adolf Hitler, em uma Alemanha unida e despolarizada.
Erik von Kühnelt-Leddihn, em uma descrição fabulosa do clima político alemão antes da ascensão de Hitler, nos revela uma Alemanha onde seu povo nunca esteve tão unido em suas opiniões.
A França tinha tudo para ser a sede da tirania que se verificou na Alemanha. O affair Dreyfus inaugurou no país um clima de anti-semitismo, maniqueismo político e sectarismo... E poucos notaram que exatamente aquele clima de polarização poderia explicar a frustração daquela possibilidade.
O perigo de ocorrer o que ocorreu na Rússia, na Alemanha, era mais fácil em uma sociedade unida, linear e irmanada na mesma ideologia do que em seu inverso. Um clima de grande unanimidade, ao contrário do que nossas mídias modernas divulgam, é tão perigoso quanto um de polarização intensa. Ao passarmos em revista as grandes sociedades as vésperas de seus ingressos no totalitarismo, não encontramos ali um clima de polarização. Pelo contrário, encontramos um clima de profunda unanimidade, e as minorias cada vez mais acuadas.
Minha tese é que, é mais fácil uma tirania ser instaurada em uma sociedade unida, do que em uma polarizada. Não é fácil atrair, agradar ou dominar um povo polarizado. Um povo unanime em suas posições é mais fácil ser dominado por um hábil demagogo com pretensões totalitárias do que seu oposto.
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