Estudantes protestando no Maio de 68 em Paris |
Por Roger Scruton I Trad: Erick Ferreira
As universidades existem para prover
os estudantes com o conhecimento, a habilidade e a cultura que irá prepará-los
para a vida, enquanto reforçam o capital intelectual do qual todos nós
dependemos. Evidentemente, os dois propósitos são distintos. Um diz respeito ao
crescimento do individuo, o outro, a nossa compartilhada necessidade por
conhecimento. Mas eles também estão entrelaçados, de modo que o prejuízo de um
dos propósitos, seja o prejuízo do outro. É isto que nós estamos vendo agora,
como nossas universidades se voltam cada vez mais contra a cultura que as
criou, escondendo isso dos jovens.
Os
anos gastos na universidade pertencem aos ritos de iniciação estudados pelos
antropólogos vitorianos, nos quais, aqueles que nascem dentro de uma tribo, assumem
o compromisso de perpetuá-la. Se perdermos isto de vista, a mim parece que, estaremos em perigo de separar a universidade de seu objetivo moral e social,
que é aquele de entregar a todos uma reserva de conhecimento e cultura que faça algum sentido.
Este
propósito tem sido central para a tradição educacional que criou a civilização
ocidental. A Paideia grega considerou o cultivo da civilidade como a
parte central do currículo; a prática religiosa e a educação moral permaneceram
uma parte fundamental dos estudos universitários ao longo da Idade Média, e o
ideal renascentista do virtuoso foi a inspiração para o despontar da studia
humaniores. A universidade que emergiu do iluminismo não relaxou o reino
moral, mas considerou a academia como um modo disciplinado de vida, cujas
regras e procedimentos colocavam-se a parte dos negócios cotidianos. Entretanto,
isto dotou aqueles negócios cotidianos com a perspectiva de longo prazo
sem a qual nenhuma atividade humana teria sentido próprio. Mesmo a vida agitada de estudante nas universidades alemães, durante o século XIX – quando os
duelos tornaram-se parte da cultura universitária –, estava contido em códigos
uniformes de comportamento e domesticidade colegiada e dedicada a essa síntese
peculiar de disciplina moral, conhecimento factual e competência cultural que
os alemães conhecem como Bildung.
Durante
o curso do século XIX, entretanto, as universidades sofreram uma rápida mudança
em sua recepção publica. O declínio do modo religioso de vida, a ascensão das
classes médias ávidas por status social e
poder político, e as demandas pelo conhecimento e habilidades exigidas por uma
economia industrial pressionou as universidades a mudar seu curriculum, o
recrutamento de estudantes e professores, e sua relação com a cultura que lhe
circundava. Novas universidades foram fundadas na América e Britânia, uma delas
— A University College London, datada
de 1826 — com um currículo explicitamente secular, designada para produzir mentes
científicas que varreriam para longe as teias teológicas nas quais todas as
questões universitárias haviam sido, anteriormente, envolvidas.
Apesar destas mudanças, entretanto, que forçaram as instituições educacionais à uma nova consciência de sua missão, a universidade conservava seu status como uma guardiã da alta cultura. Ela era um lugar onde o pensamento especulativo, a investigação crítica, e o estudo de livros importantes e a linguagem eram mantidas em uma atmosfera de confinamento estudioso. Quando o Cardeal Newman escreveu The Idea of a University em 1852, ele foi largamente motivado pela defesa da velha concepção da universidade, como um lugar separado, um recinto quase monástico, oposto a mentalidade utilitária da nova sociedade industrial. Para Newman, uma universidade existe para moldar o caráter daqueles que a ela acorrem; imergindo alunos em um ambiente colegial, e imprimindo neles um ideal de mente instruída, transformaria meros seres humanos em cavalheiros.
Isso,
segundo Newman, é a verdadeira função social da universidade. Dentro dos muros
da academia, o adolescente recebe uma visão dos fins da vida; e ele tira da
universidade a única coisa que o mundo não lhe daria, que é uma concepção de
valor intrínseco. E é por isso que a universidade é tão importante na era do
comércio e da indústria, quando a tentação utilitária nos assalta de todos os
lados, e quando corremos o perigo de tornar cada propósito, um fato material— em
outras palavras, como Newman o viu, em perigo de permitir o meio de substituir
os fins.
Muito
mudou desde os dias de Newman. Sugerir que as universidades se comprometam em
produzir cavalheiros é mais do que ridículo em uma época em que a maioria dos
estudantes são mulheres. A universidade ideal de Newman foi o modelo das atuais
universidades de Oxford, Cambridge, e Trinity College, e Dublin, que na época
admitia somente rapazes, e não permitia a seus acadêmicos residentes se casarem,
e eram mantidas como instituições quase religiosas dentro do rebanho da Igreja
Anglicana. Seus alunos de graduação eram recrutados em grande parte nas escolas
privadas, e seu currículo era solidamente baseado em latim, grego, teologia e
matemática. A vida doméstica deles girava em torno do colégio, onde professores
[dons] e universitários tinham seus
quartos, onde jantavam juntos todas as noites, e vestiam suas vestes acadêmicas.
Somente
uma pequena parcela daqueles que frequentavam as velhas universidades
britânicas nos tempos de Newman considerava o estudo como o verdadeiro
proposito de ser “superior” no alma mater. Alguns estavam lá para remar
ou jogar rugby; outros estavam
ganhando tempo antes de herdarem um título; alguns estavam a caminho do serviço militar, e ao mesmo tempo, estavam se amotinando com seus colegas. Quase
todos eram membros de uma elite social que havia atingido essa maneira única de
se perpetuar, revestindo seu poder com um verniz de alta cultura. E neste
ambiente protegido e belo, você também poderia levar a cultura a sério. Com
dinheiro no banco e tempo em suas mãos, não foi tão difícil virar as costas
para os valores utilitários.
A
universidade de hoje difere daquela do cardeal Newman em quase todos os
aspectos. Ela recruta de todas as classes da sociedade, é aberta igualmente aos
homens e às mulheres, e é frequentemente financiada e provida pelo estado.
Pouco ou nada resta da vida doméstica equilibrada que moldou a alma de Newman,
e o currículo não se centra mais em assuntos sublimes e sem propósito como o
grego antigo, em que pairava a visão fascinante de uma vida além do comércio,
mas sobre as ciências, disciplinas vocacionais, e os agora onipresentes “estudos de negócios”, através dos quais os estudantes, supostamente,
aprendem os caminhos do mundo.
Além
disso, as universidades se expandiram para oferecer seus serviços a uma
proporção cada vez maior da população e para absorver uma quantidade cada vez
maior do orçamento nacional. No estado de Massachusetts, o ensino universitário
tem receita maior do qualquer outro setor. Há pelo menos uma universidade em
todas as principais cidades britânicas ou americanas, e as universidades
estaduais americanas podem ter, ao mesmo tempo, mais de 50.000 estudantes. A
educação superior é oferecida como um direito a todos os que passam pelo bacharelado francês ou pelo Feststellungsprüfung alemão, e os políticos
europeus falam muitas vezes como se o trabalho da reforma educacional não
estivesse completo até que todas as crianças pudessem, no devido tempo, se
formar. A universidade não está mais no negócio de criar uma elite social, mas
no ramo oposto de garantir que as elites sejam uma coisa do passado.
Sob
o pretexto de fornecer um "propósito além do propósito", seus críticos
poderiam dizer que a universidade preconizada por Newman foi projetada para
proteger os privilégios de uma classe alta existente e colocar obstáculos ante o
avanço de seus concorrentes. Ela transmitia habilidades fúteis, que eram
apreciadas justamente por sua futilidade, já que isso as transformava em um símbolo
de adesão que poucos poderiam pagar. E longe de avançar no fundo do
conhecimento, ela existia para salvaguardar os mitos sagrados: colocava um muro
protetor de encantamento em torno da religião, dos valores sociais e da alta
cultura do passado, e fingia que as habilidades recônditas necessárias para
desfrutar deste encantamento – o latim e o grego, por exemplo – eram as formas
mais elevadas de conhecimento. Em suma, a universidade newmanita foi um instrumento para a perpetuação de uma aula de
lazer. A cultura que transmitia não era propriedade de toda a comunidade, mas
apenas uma ferramenta ideológica, através da qual os poderes e privilégios da
ordem existente eram dotados com sua aura de legitimidade.
Agora,
em contraste, temos universidades dedicadas ao avanço do conhecimento, que não
são meramente não-elitistas, mas anti-elitistas em sua estrutura social.
Elas não fazem discriminação por motivos de religião, sexo, raça ou classe. São
lugares de abertura da mente, de pesquisa e questionamento, lugares sem
compromissos dogmáticos, cujo objetivo é o progresso do conhecimento através de
um espírito de livre investigação. Este espírito é transmitido aos seus alunos,
que têm a mais ampla escolha de currículo possível e adquirem conhecimentos que
não são apenas firmemente fundamentados, mas eminentemente úteis em suas vidas
futuras: administração de empresas, por exemplo, administração hoteleira ou
relações internacionais. Em suma, as universidades evoluíram de clubes
socialmente exclusivos, para o estudo de futilidades preciosas; para centros de
treinamento socialmente inclusivos; para a propagação de habilidades necessárias.
E a cultura que eles transmitem não é de uma elite privilegiada, mas de uma “cultura inclusiva” que qualquer um pode adquirir e desfrutar.
Dito
isso, entretanto, é mais provável que um visitante da universidade americana de
hoje seja atingido pelas variedades nativas de censura do que por qualquer
ambiente de livre investigação. É verdade que os americanos vivem em uma
sociedade tolerante. Mas eles também formam guardiões vigilantes, interessados
em detectar e extirpar os primeiros sinais de “preconceito” entre os jovens. E esses guardiões têm uma tendência
inata a gravitar para as universidades, onde a excessiva liberdade do currículo
e sua abertura para a inovação lhes proporcionam uma oportunidade de exercer
suas paixões censoras. Os livros são usados ou eliminados do plano de estudos
devido à sua correção política; códigos de fala e serviços de aconselhamento
policiam a linguagem e o pensamento de alunos e professores; os cursos são
planejados para transmitir conformidade ideológica, e os estudantes são
frequentemente penalizados por terem chegado a alguma conclusão herética sobre
as principais questões do dia. Em áreas delicadas, como raça, sexo e a coisa
misteriosa chamada “gênero”, a censura é abertamente dirigida não apenas aos
alunos, mas também a qualquer professor, por mais imparcial e escrupuloso que exponha
as conclusões erradas.
Naturalmente,
a cultura do Ocidente continua a ser o principal objeto de estudo nos
departamentos de humanidades. No entanto, o objetivo não é mais instilar essa
cultura, mas repudiá-la; examiná-la por todos os modos pelos quais ela peca
contra a cosmovisão igualitária. A teoria marxista da ideologia, ou alguma
feminista, pós-estruturalista ou descendente foucaultiana dela, será evocada como prova da visão de que as
preciosas realizações de nossa cultura devem seu status ao poder que fala através delas, e que elas são, portanto,
de nenhum valor intrínseco. Dito de outra forma: o antigo currículo, que Newman
viu como um fim em si mesmo, foi rebaixado a um meio. Esse antigo currículo
existia, dizem-nos, a fim de manter as hierarquias e distinções, as formas de
exclusão e dominação que mantinham uma elite dominante. Estudos nas humanidades
são agora projetados para provar isso -- para mostrar a maneira pela qual,
através de suas imagens, histórias e crenças; através de suas obras de arte,
sua música e sua linguagem, a cultura do Ocidente não tem significado mais
profundo do que o poder que serviu para perpetuar. Dessa maneira, toda a ideia
de nossa cultura herdada como uma esfera autônoma de conhecimento moral, e que
requer aprendizado, erudição e imersão para melhorar e reter, é lançada aos
ventos. A universidade, em vez de transmitir cultura, existe para desconstruí-la,
remover sua “aura” e deixar o estudante, após quatro anos de
dissipação intelectual, com a visão de que tudo é permitido e nada importa.
Surge,
portanto, a impressão de que, fora das ciências exatas, não há corpo de
conhecimento recebido e mais nada a aprender, além de atitudes doutrinárias. Em
The Closing of the American Mind (No
Brasil, o livro recebeu o título de “O declínio da cultura ocidental”), Allan
Bloom lamentou o relativismo lânguido que infectou as humanidades – a crença,
compartilhada por estudantes e professores, de que não há valores universais, e
que estudamos meramente por curiosidade as obras que chegaram até nós. Se
permanecemos indiferentes ao desafio moral com que nos confrontam, é em grande
parte porque não acreditamos mais que exista tal coisa como um verdadeiro
desafio moral.
Embora
a observação de Bloom seja verdadeira, ela não é toda a verdade. O relativismo
moral abre as portas para um novo tipo de absolutismo. O currículo emergente
nas humanidades é, de fato, muito mais censório, em questões cruciais, do que
aquele que se esforça para substituir. Não é mais permitido acreditar que
existem distinções reais e inerentes entre as pessoas. Todas as distinções são “culturalmente construídas” e, portanto, mutáveis. E o objetivo do currículo é
desconstruí-los, substituir a distinção pela igualdade em todas as esferas em
que a distinção faz parte da cultura herdada. Os estudantes devem acreditar
que, em aspectos cruciais, em particular, naqueles assuntos que abordam raça,
sexo, classe, papel e refinamento cultural, a civilização ocidental é apenas um
dispositivo ideológico arbitrário e certamente não (como sugere sua autoimagem)
um repositório de verdadeiro conhecimento moral. Além disso, eles devem aceitar
que o objetivo de sua educação não é herdar essa cultura, mas questioná-la e,
se possível, substituí-la por uma nova abordagem “multicultural” que não faça distinções entre as muitas formas de
vida pelas quais os estudantes se encontram cercados.
Duvidar
dessas doutrinas é cometer a mais profunda heresia e representar uma ameaça
para a comunidade que a universidade moderna precisa. Pois a universidade
moderna tenta atender aos alunos, independentemente de religião, sexo, raça ou
origem cultural, e mesmo, independentemente, da capacidade. E é em grande parte
uma criação do Estado e está totalmente inscrita na ideia estatista do que uma sociedade
deveria ser – ou seja, uma sociedade sem distinção. Portanto, é tão dependente
da crença na igualdade quanto a universidade do Cardeal Newman dependia da
crença em Deus. Seu objetivo é criar um microcosmo da sociedade futura, assim
como a faculdade do cardeal Newman era um microcosmo do mundo dos cavalheiros.
E como nossa herança cultural é um sistema de distinções, opondo-se à igualdade
em todas as esferas em que gosto, julgamento e discriminação fazem suas
reivindicações, a universidade moderna não tem escolha a não ser se opor à
cultura ocidental.
Portanto,
apesar de sua aspiração inata à associação, os jovens são informados na
universidade de que eles vêm do nada e não pertencem a nada: que todas as
formas de associação preexistentes são nulas e sem efeito. Eles são oferecidos em
um rito de passagem para o nada cultural, uma vez que esta é a única maneira de
alcançar o objetivo igualitário. Eles são dados, no lugar das antigas crenças
de uma civilização baseada na piedade, julgamento e distinção, as novas crenças
de uma sociedade baseada na igualdade e na inclusão; dizem-lhes que o
julgamento de outros estilos de vida é um crime. Se o propósito fosse meramente
substituir um sistema de crença por outro, se estaria aberto ao debate
racional. Mas o objetivo é substituir uma comunidade por outra.
Mas
qual é a alternativa? Se as universidades não propagam mais a cultura que lhes
foi confiada, onde mais os jovens irão buscar por ela? Alguns pensamentos em
resposta a esta questão eram sugeridos por experiências que começaram para mim em
1979. Os escritos de Foucault, Deleuze, e Bourdieu começavam a causar impacto
na Universidade de Londres, onde eu lecionava. Meus alunos estavam sendo
informados por todos os lados que não há conhecimento nas humanidades, e que as
universidades não existem para justificar a cultura como uma forma de
conhecimento, mas para desmascará-la como uma forma de poder.
Em
resposta, eu perguntei a mim mesmo, o que exatamente eu estava tentando ensinar,
e porquê. Ao apresentar aos estudantes as grandes obras da filosofia,
literatura, e critica que eu havia absorvido na escola e na universidade; senti
que estava oferecendo a eles o quadro de referência, o estoque de especulações,
os paradigmas de intuição e alusão, através dos quais poderiam entender seus
mundos. Eu estava oferecendo a eles a participação em uma cultura, não como um
corpo de doutrina, mas como uma conversa contínua. E isso, que eu senti, era
uma forma de conhecimento real: não conhecimento de fatos e teorias, mas conhecimento
do que sentir, como se relacionar e com quem pertencer. No entanto, esse corpo
de conhecimento, como supus que fosse, foi agora descartado como ideologia
burguesa, ou – no idioma de Foucault – como a episteme, o saber acumulado, de uma classe dominante.
Um
dia, me chegou um convite, vindo de boca em boca, para discursar em um seminário
clandestino em Praga. Eu aceitei; como resultado, fui colocado em contato com
pessoas para quem a busca de conhecimento e cultura não era um luxo dispensável,
mas uma necessidade. Nada mais poderia fornecer-lhes o que procuravam, que era
uma rota de fuga do mundo de mentiras pelo qual eles estavam cercados. E ao
discutir a herança cultural do Ocidente entre si, eles foram considerados
hereges, e arriscavam-se a prisão e ao encarceramento apenas por se encontrarem
como faziam. Ironicamente, talvez a maior conquista intelectual do Partido
Comunista foi convencer as pessoas de que a distinção de Platão entre
conhecimento e opinião é válida, e que a opinião ideológica não é meramente
distinta do conhecimento, mas o inimigo do conhecimento, a doença implantada no
cérebro humano que torna impossível distinguir ideias verdadeiras de falsas.
Essa foi a doença espalhada pelo partido. E foi espalhada por Foucault também.
Pois foi Foucault quem ensinou meus colegas a avaliar todas as ideias, todos os
argumentos, todas as instituições, convenções ou tradições em termos de “dominação” que mascara. A verdade e a falsidade
não tinham um significado real no mundo de Foucault; tudo o que importava era
poder.
Essas
questões tem sido trazidas em acentuado relevo para os tchecos e eslovacos através
do ensaio de Václav Havel “O
Poder dos que não tem poder”
(1978), convidando seus compatriotas a “viver na verdade”. Como poderiam fazer isso, se fossem incapazes de
distinguir o verdadeiro do falso? E como eles poderiam distinguir o verdadeiro
do falso sem o benefício da cultura real e do conhecimento real? Daí a busca
por essas coisas se tornou urgente. E o preço dessa busca era alto - assédio, prisão,
privação de direitos e privilégios comuns e uma vida à margem da sociedade.
Quando algo tem um alto preço moral, somente pessoas comprometidas o buscarão.
Encontrei, portanto, nos seminários clandestinos, um corpo estudantil singular –
pessoas dedicadas ao conhecimento, como eu o entendia, e conscientes da
facilidade e do perigo de substituir o conhecimento pela simples opinião. Além
disso, eles estavam procurando por conhecimento no lugar onde é mais necessário
e mais difícil de encontrar – na filosofia,
história, arte e literatura, nos lugares onde a compreensão crítica, em vez do
método científico, é nosso único guia. E o que foi mais interessante para mim
foi o desejo urgente entre todos os meus novos alunos de herdarem o que lhes
foi entregue. Eles haviam sido criados em um mundo onde todas as formas de
pertencimento, além da submissão ao partido no poder, haviam sido
marginalizadas ou denunciadas como crimes. Eles entenderam instintivamente que
uma herança cultural é preciosa, precisamente, porque oferece um rito de
passagem para a coisa que você realmente é, e a comunidade de sentimentos que é
sua.
Havia
outra característica cativante dos seminários clandestinos, que era a escassez
de seus recursos intelectuais. Acadêmicos no Ocidente são obrigados a publicar
artigos e livros caso queiram avançar em suas carreiras, e desde os anos da
Segunda Guerra Mundial isso levou a uma proliferação de literatura que, se nem
sempre era de segunda categoria do ponto de vista intelectual, quase
invariavelmente era sem mérito literário – enfadonho, entulhado de notas de
rodapé, sem contar imagens ou excesso de frases rebuscadas, e tão efêmera em
conteúdo quanto impossível de ignorar. O peso dessa pseudo-literatura oprime
professores e estudantes nas ciências humanas, e agora é quase impossível
descobrir os clássicos que estão enterrados embaixo dela.
Às
vezes penso que o maior serviço à nossa cultura foi prestado pela pessoa que
ateou fogo à Biblioteca de Alexandria, assegurando, assim, que nada
sobrevivesse daquela massa de literatura, além daquelas obras consideradas tão
preciosas que cada pessoa teria uma cópia em sua casa. Os comunistas prestaram
um serviço parecido à vida intelectual na Tchecoeslováquia ao evitar a
publicação de qualquer coisa, exceto aquelas obras consideradas tão preciosas
que cada pessoa estava preparado para produzi-las em laboriosas edições samizdat. Estas seriam passadas de mão
em mão e lidas com ávido interesse por pessoas a quem o conhecimento, em vez de
avanço na carreira era uma meta. Como isso foi refrescante após a vida entre os
periódicos acadêmicos e as notas de rodapé!
Claro
que as circunstâncias dos seminários clandestinos eram incomuns e ninguém
queria reproduzi-las. No entanto, durante os dez anos que eu trabalhei com
outros para transformar esses grupos privados de leitura em uma universidade
estruturada (ainda que clandestina), eu aprendi duas verdades muito
importantes. A primeira é que uma herança cultural realmente é um corpo de
conhecimento e não uma coleção de opiniões — conhecimento do coração humano, e
visão de longo prazo de uma comunidade humana. A segunda é que esse conhecimento
pode ser ensinado, e que isso não exige um vasto investimento em dinheiro, como
os $ 50,000 por ano com cada estudante exigidos por uma Ivy League University. Isto requer apenas um punhado de livros que
passaram no teste do tempo e são apreciados por todos os que realmente os
estudam. Isto exige professores com conhecimento e estudantes entusiasmados em
adquiri-lo. E requer ainda a tentaiva continua para expressar o que se aprendeu,
seja nos ensaios ou no encontro face-a-face com um crítico. Todo o resto —
administração, tecnologia da informação, salas de leitura, bibliotecas,
recursos extracurriculares — é, em comparação a isso, um luxo insignificante.
Quando as instituições são incuravelmente
corrompidas, como as universidades foram corrompidas sob o comunismo, devemos
começar tudo outra vez, mesmo que o custo disso seja tão alto quanto foi na
Europa ocupada pelos soviéticos. Para nós, o custo não é tão alto. O dom mais
precioso da nossa civilização, e o que mais foi ameaçado durante o século XIX, foi
a liberdade de associação. Porque esta liberdade ainda existe, e em lugar
algum, além da América, o fato de que nós não podemos mais confiar nossa lata
cultura às universidades é menos importante. O destino de Harvard e Yale é
inevitavelmente de preocupação geral; mas também há lugares como o St. John’s College em Annapolis, ou o Hillsdale College em Michigan, onde pessoas
que acreditam no velho currículo são preparadas para ensiná-lo. Há grupos
privados de leitura, cursos online, associações de acadêmicos, think tanks, e séries de palestras públicas.
Há instituições como o Intercollegiate
Studies Institute, que oferece um serviço de resgate para estudantes
desanimados pelo politicamente correto. Há revistas como essa, que servem como
um foco para discussões que, afinal de contas, não precisam acontecer,
especificamente, em uma universidade. Parece-me que permitimos a nós mesmos
sermos intimidados na crença de que, porque as universidades tem bibliotecas,
laboratórios, professores eruditos, e recursos substanciai, eles são também indispensáveis
depositários do conhecimento. Nas ciências, isto é verdade. Mas isso não é mais
verdade nas humanidades.
No entanto, o caminho a seguir não é tão claro
quanto os defensores do antigo currículo gostariam que fosse. Programas de
Grandes Livros, pesquisas sobre nossa herança cultural, o estudo comparativo da
arte, da música e da arquitetura ocidental – todas elas são escolhas óbvias.
Mas por quê? O que distingue esses programas dos cursos de música pop, cartoons e estudos de gênero que tão facilmente
caminham para substituí-los? Dizer que o currículo tradicional continha
conhecimento real em oposição a distrações efêmeras é implorar por uma pergunta.
Porque não sabemos em quê realmente consiste o conhecimento. Sentimos isto, é
claro, como meus alunos tchecos sentiram. Sentimos o chamado da cultura que é
nossa e queremos dizer que, ao responder a esse chamado, estamos deixando o
mundo da opinião e entrando no mundo do conhecimento. Mas por quê?
As
respostas até hoje são triviais – como quando – Matthew Arnold nos diz, em Culture and Anarchy, que uma alta
cultura consiste no “melhor
que foi pensado e dito” - ou
então alguma versão da visão iluminista de que o conhecimento cultural envolve
transcender o particular no universal, substituindo nossas lealdades limitadas
e comunidades imaginárias com algum ideal cosmopolita. E é um pequeno passo
dessa posição do Iluminismo para o currículo multicultural e igualitário que
defende o universal humano apenas porque tudo o que distingue uma herança
cultural verdadeira foi removido dela. Até chegarmos a algo melhor do que essas
duas abordagens, não suspeitarei que escaparemos das garras das universidades,
ou nos sentiremos confiantes o suficiente para começar de novo sem elas.
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