Cena da versão cinematográfica de 1984, dirigido por Michael Radford |
George
Orwell em sua obra seminal “1984”, cunhou um termo que viria se
consagrar nos meios intelectuais e se personificar com toda a
fidelidade na postura e no discurso dos agentes modernos da
revolução. O duplipensar, que nas palavras de Orwell,
resume-se como a “habilidade que alguém possui de reter na mente,
ao mesmo tempo, dois conceitos absolutamente contraditórios, e
aceitá-los, ambos, como verdadeiros”. Uma característica que se
tornou comum na conduta revolucionária.
Quem
não se sente perplexo ao ver o deputado Jean Wyllis defender com
fervor a autonomia e o direito de crianças de 9 anos de idade para
“mudar de sexo”, ao mesmo tempo em que repudia veementemente a
diminuição da maioridade penal, servindo-se do frágil argumento de
que o infrator de 16 anos não possui consciência para responder por
seus crimes. Atitude semelhante que se verifica em Marilena Chauí, a
sacerdotisa mor da tertúlia marxista brasileira, que de forma
visceral despejou seu ódio contra a classe média, esquecendo-se que
por seu obeso salário, também faz parte dela. O mesmo comportamento
que a esquerda em geral tem em face da questão do desarmamento,
contra o qual, repete ad nauseam “que a liberação das
armas pode aumentar o número de homicídios”. Opinião que se
inverte quando se trata da liberação da maconha, neste caso, ao
contrário do argumento anterior, a liberação da erva pode
significar a diminuição do consumo e do tráfico. São contradições
tão grotescas e escancaradas como estas que fazem do establishment
nacional um correspondente fiel ao “Ministério da Verdade” [1]
do romance de Orwell.
E
o mais surpreendente deste turbilhão de contradições repetidas de
forma incessante é que os indivíduos que o proferem, o fazem
conscientemente, com a firme convicção de suas contradições.
O
espetáculo mórbido de contradições no agir e no falar da
intelligentsia não se trata de uma mera contradição
acidental, trata-se de uma ação consciente. Cumprindo-se a risca um
trecho de “1984” que diz:
“Saber e não saber; ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas; defender simultaneamente duas ideias contraditória e assim, acreditar em ambas: usando a lógica contra a lógica; repudiar a moralidade em nome da moralidade”.
A
esquerda tem se encontra com exatidão nestas palavras. Em suma: esta
clara contradição do discurso marxista é consciente e faz parte de
uma realidade autotélica, ou seja, que só faz sentido dentro
daquele pequeno universo que o marxismo criou na mente de seus
militantes. Isto se entendermos o marxismo como realidade
independente, onde tudo gira em torno da vontade revolucionária de
seus líderes. De modo que nesta cosmovisão privada, não há
contradição no mundo particular do revolucionário, o que impera é
a “lógica” revolucionária com suas próprias leis.
A
Oceania [2], descrita no distópico romance mostra a cada dia seus
sinais mais presentes em nossa sociedade, e o duplipensar cada
vez mais entranhado na mentalidade das massas.
Inclusive,
um dos grandes ícones do chamado marxismo ocidental, Györg Lukács,
escreveu no prefácio de seu afamado “História e consciência de
classe” de 1920:
“Se a Fausto é permitido abrigar duas almas em seu peito, por que uma pessoa normal não pode apresentar o funcionamento simultâneo e contraditório de tendências intelectuais opostas quando muda de uma classe para outra em meio a uma crise mundial?” (LUKÁCZ, 2003, p. 4)
O
pensamento de Lukács parece estar em perfeita sintonia com a
sociedade distópica descrita por Orwell, e o porquê desta atitude
tão desconcertante é explicado nas próprias páginas de 1984: “é
somente apaziguando contradições que o poder pode ser mantido”.
Isso
nos leva a concluir que o comunismo é um monstro fantástico que
possui a incrível capacidade de assumir e absorver as posições
mais antagônicas, sem nunca alterar sua essência ou abandonar suas
pretensões.
Mas,
como na trama de Orwell, dentro da nossa sociedade fragmentada pela
“esquerda hegemônica”, também existem os seus Goldstein [3],
que inteligentemente resolvem exceder os limites demarcados pelo
“Ministério da Verdade” e sua patrulha ideológica e
corajosamente transgridem os estatutos do “ingsoc” [4]. Embora, a
retaliação da intelligentsia seja
imediata, e como em 1984, o rosto do “ideocriminoso” [5] é
exposto a vexação pública; ao ostracismo brutal. Mas nada pode
reprimir o lume da verdade que ressoa de seus lábios.
São
fatos como estes que fazem de “1984” mais que uma narração
fictícia, mas um retrato fiel de nossa triste realidade e também
do futuro que a ilusão revolucionária nos reserva.
Notas:
1.
Nome fictício de um dos quatro ministérios que administravam as
funções do governo em 1984. No romance, o Ministério da Verdade se
ocupava das notícias (falsas), diversão, instrução, e belas artes
dentro da Ocêania.
2.
Ocêania é o país fictício onde transcorre o romance.
3.
Emmanuel Goldstein é um dos inimigos máximos do Estado Totalitário
que governa a Ocêania. "o traidor original, o primeiro a
conspurcar a pureza do partido", como descreve Orwell. Por isso,
seu rosto é exposto diariamente para a vexação publica, para que,
alimentando o ódio cotidiano a sua imagem, torne o povo de Oceânia
menos vúlneravel a sua influência.
4.
Ingsoc, sigla de Socialismo Inglês. O grande partido por trás de
toda a máquina estatal.
5.
Ideocriminoso, aquele que comete crimes de pensamento, que
cultiva ou divulga ideias contrárias a ortodoxia do partido.