por Erick Ferreira
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A
escola foi concebida em suas origens como o “lugar do ócio” [1],
onde os teorétikos tinham seu oásis de contemplação e criação
intelectual. Este sentido etimológico da escola – intimamente ligado ao estilo
de vida dos sábios da antiguidade [2] que tomaram o ócio como condictio sine
qua non para a criação intelectual –, se perdeu totalmente em nossos tempos. Atualmente, o ócio, para a maioria das pessoas possui o mesmo sentido de preguiça. No
entanto, em uma análise mais apurada as duas palavras se distinguem. Ócio é
estar livre de preocupações desnecessárias, com a mente livre para a reflexão,
enquanto a preguiça, refere-se a recusa de trabalhos físicos ou intelectuais;
estar na total inércia. Portanto, o ócio a que me refiro aqui é antes uma
necessidade do homem interior: estar tranquilo e despreocupado para que o intelecto possa alcançar alturas mais sublimes. Aquele mesmo ócio a
que faz referência o próprio Cristo quando diz a seus apóstolos: “Considerai
os lírios do campo, não trabalham, nem tecem, e no entanto, eu vos asseguro que
nem Salomão em toda sua glória se vestiu como um deles” (Lucas 12, 27). O mesmo
ócio que era decantado por Virgílio em suas éclogas: O Meliboe, deus nobis
hoec otia fecit (Ó Melibo, um deus nos deu esta ociosidade) [3], e que dá origem a palavra: “neg-ócio”; que por sua vez é
a grande engrenagem da economia. Por certo este sentido, há tempos se perdeu,
e será missão hercúlea restaurá-lo.
De
certo modo, foi para dar sentido à vida ociosa que nasceu a escola. Nela, os
sábios se reuniam e produziam seu trabalho teorétiko – que para tal, exigia o ócio –, e
algum tempo depois; nela (a escola), as crianças aprendiam a tirar proveito do
ócio que dispunham em grau especial. Já que para
o crescimento intelectual é imprescindível que a mente esteja livre de
preocupações inúteis. O homem deve aprender a trabalhar primeiro com o
cérebro, para depois trabalhar com as mãos ou, a pensar primeiro com as mãos, –
como metaforicamente dizia Corção – para depois pensar com a cabeça.
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É
bem verdade que a ociosidade é uma condição necessária para a criação
intelectual, e até mesmo, para o despontar da imprescindível inspiração que
gera os grandes clássicos da humanidade, e é também verdade, que a preguiça –
o estar livre de trabalhos físicos e intelectuais, como há pouco definimos –, é
um grande empecilho para a vida intelectual, pois não raras vezes, dela costuma
nascer as mais insanas inspirações que uma mente desorientada costuma engendrar.
Um cérebro preguiçoso é, por certo, um maquinador de vícios e virtudes. “Causa de pecados carnais e delitos de
sangue”, como dizia Comênius.
Ao
lembrarmos que a escola, em tempos remotos, deu sentido ao ócio e assim formou
índoles criativas; adentramos, assim, em um grave conflito de nossa
modernidade: “O que o homem fará de uma vida cada vez mais ociosa?” Engendrará através dela
vícios ou virtudes? O educador italiano Domenico de Masi em Il futuro del
lavoro nos fornece um quadro interessante sobre esta questão e nos conduz a um ponto candente:
“No Primeiro Mundo, --- diz ele --- trabalham mais ou menos 20% da população. No Terceiro Mundo, os trabalhadores não chegam a dez por cento. Em suma, dos quase seis bilhões de habitantes do planeta, os considerados trabalhadores não chegam a um bilhão. Os outros cinco bilhões são crianças, velhos, pensionistas e aposentados, donas de casa que cuidam da família, jovens que estudam e pessoas que vivem em busca do que fazer para sobreviver – se pobres – ou tentando matar o tempo – se herdeiros de fortunas”.
Os dados apresentados por De Massi
podem ser objetos de questionamentos, mas há que se concordar que o número de
desocupados, por certo, ainda supera o de trabalhadores. E com uma classe ociosa cada vez
maior, uma grande multidão vive entendiada, enquanto outra, vive extenuada a
sustentá-la.
A
escola, o eterno lugar do ócio, já não é capaz de tornar o ócio das crianças e
dos adolescentes algo fecundo e útil. E nesta perspectiva, nasce uma grave preocupação:
se o homem não dirigir suas aspirações interiores para o bem, elas se voltarão
espontaneamente ao mal.
O
progresso científico nos reserva tempos cada vez mais ociosos, e por
conseguinte, indivíduos mais entendiados. Desta constatação, Domenico de Masi
formulou a famosa expressão: “Ócio criativo”; que tende a ser uma máxima
corrente de nossa época e para outros: a “partícula de soma” [4] de nossos
dias. Por outro lado, se uma vasta classe ociosa se forma nas grandes metrópoles,
ainda impera, em certa minoria, uma classe trabalhadora, que tende a diminuir
com o avançar das mudanças e com a alienação que suas condições os coloca em
face da vasta classe ociosa. Outra tendência observada, é que o conceito de
trabalho tende a ser cada vez mais “pejorativado” pela maioria ociosa.
Embora
todos estejam convencidos da necessidade imprescindível do trabalho físico, ele ainda
carrega consigo sentido de encargo penoso, e na prática, é o exercício de
tarefas dissipadoras, que priva a muitos da atitude mais criativa e
transformadora do homem: a reflexão e o senso crítico, como gostam de
acrescentar inoportunamente os marxistas. Excluindo a classe
trabalhadora da “partícula redentora” de Domenico de Masi. Pensamos: como um
trabalhador extenuado e dissipado por suas longas horas de trabalho poderá ter
uma fecunda vida intelectual? Se esta classe não se informa, torna-se joguete
da classe ociosa e bem informada a que sustenta com seu suor.
***
Em
nossos tempos já se especula o dia em que o trabalho manual seja exercido
exclusivamente por máquinas, onde grandes trabalhos sejam executados em
instantes com o simples toque de um botão; e neste cenário previsível, os
homens desempenhariam somente atividades intelectuais, – se é que estas também
não serão realizadas pelas máquinas. Já no início do século XX, o escritor
inglês G. K Chesterton, observava esta estranha tendência da modernidade em seu
livro Ortodoxia. Dizia ele:
“Existe o costume de nos queixarmos da correria e do árduo trabalho de nossa época. Mas na verdade, a marca principal de nossa época é uma profunda preguiça e fadiga. O fato é que a verdadeira preguiça é a causa da correria. Tomemos um caso totalmente externo: as ruas são barulhentas, cheias de táxis e carros. Mas isso não se deve à atividade humana, mas sim ao repouso. Haveria menos correria se houvesse maior atividade, se as pessoas simplesmente andassem a pé. O mundo seria mais silencioso se houvesse mais trabalho”.
De fato, esta falsa correria, na
verdade é a consequência natural da inercia de homens sentados comodamente
dirigindo suas máquinas, que aos poucos passou a cumprir muitas de suas funções
orgânicas. A inércia parece e o desejo de se entregar a ela parece ser a força motriz do progresso. Nunca o homem desfrutou de tantas facilidades e tão pouca
necessidade de força física e intelectual. Até nas guerras, já são previstas, a
substituição de homens por máquinas.
São
previsões – amedrontadoras para alguns, encantadoras para outros – que o
progresso nos reserva. É o destino fatal da humanidade, assegura De Masi. E já
que estamos na iminência de ver em breve a concretização de tais episódios,
devemos pensar também, em como o homem viverá após a superação de grandes
esforços braçais? E o que fará com uma vida que lhes exigirá poucos
sacrifícios? E o que restará do homem quando a maioria de suas atividades for
realizada por máquinas? Nos preparemos para pensar no advento da era da
preguiça e nas suas consequências, que podem ser trágicas.
Notas:
1. do grego, σχολή, que vai dar origem ao termo latino schola, que por sua vez, vai gerar o nosso aportuguesa escola.
2.
cf. Aristóteles, Metafísica, Livro I, cap. I
3. Virgilio, Écloga, I, VI
4.
Comprimido que causava sensações agradáveis nos personagens da obra fictícia Admirável
Mundo Novo de Aldous Huxley
Que texto fantástico! Prazeroso.
ResponderExcluirAgradecemos o comentário. E sinta-se a vontade neste espaço que é de todos.
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