quarta-feira, 20 de junho de 2018

A escola e a era da preguiça

por Erick Ferreira

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John Millar Watt, Plato in the garden of academos, 1966


                        A escola foi concebida em suas origens como o “lugar do ócio” [1], onde os teorétikos tinham seu oásis de contemplação e criação intelectual. Este sentido etimológico da escola – intimamente ligado ao estilo de vida dos sábios da antiguidade [2] que tomaram o ócio como condictio sine qua non para a criação intelectual –, se perdeu totalmente em nossos tempos. Atualmente, o ócio, para a maioria das pessoas possui o mesmo sentido de preguiça. No entanto, em uma análise mais apurada as duas palavras se distinguem. Ócio é estar livre de preocupações desnecessárias, com a mente livre para a reflexão, enquanto a preguiça, refere-se a recusa de trabalhos físicos ou intelectuais; estar na total inércia. Portanto, o ócio a que me refiro aqui é antes uma necessidade do homem interior: estar tranquilo e despreocupado para que o intelecto possa alcançar alturas mais sublimes. Aquele mesmo ócio a que faz referência o próprio Cristo quando diz a seus apóstolos: “Considerai os lírios do campo, não trabalham, nem tecem, e no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão em toda sua glória se vestiu como um deles” (Lucas 12, 27). O mesmo ócio que era decantado por Virgílio em suas éclogas: O Meliboe, deus nobis hoec otia fecit (Ó Melibo, um deus nos deu esta ociosidade) [3], e que dá origem a palavra: “neg-ócio”; que por sua vez é a grande engrenagem da economia. Por certo este sentido, há tempos se perdeu, e será missão hercúlea restaurá-lo.
                     De certo modo, foi para dar sentido à vida ociosa que nasceu a escola. Nela, os sábios se reuniam e produziam seu trabalho teorétiko – que para tal, exigia o ócio –, e algum tempo depois; nela (a escola), as crianças aprendiam a tirar proveito do ócio que dispunham em grau especial. Já que para o crescimento intelectual é imprescindível que a mente esteja livre de preocupações inúteis. O homem deve aprender a trabalhar primeiro com o cérebro, para depois trabalhar com as mãos ou, a pensar primeiro com as mãos, – como metaforicamente dizia Corção – para depois pensar com a cabeça.

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         É bem verdade que a ociosidade é uma condição necessária para a criação intelectual, e até mesmo, para o despontar da imprescindível inspiração que gera os grandes clássicos da humanidade, e é também verdade, que a preguiça – o estar livre de trabalhos físicos e intelectuais, como há pouco definimos –, é um grande empecilho para a vida intelectual, pois não raras vezes, dela costuma nascer as mais insanas inspirações que uma mente desorientada costuma engendrar. Um cérebro preguiçoso é, por certo, um maquinador de vícios e virtudes.  “Causa de pecados carnais e delitos de sangue”, como dizia Comênius.
                        Ao lembrarmos que a escola, em tempos remotos, deu sentido ao ócio e assim formou índoles criativas; adentramos, assim, em um grave conflito de nossa modernidade: “O que o homem fará de uma vida cada vez mais ociosa?” Engendrará através dela vícios ou virtudes? O educador italiano Domenico de Masi em Il futuro del lavoro  nos fornece um quadro interessante sobre esta questão e nos conduz a um ponto candente:
 No Primeiro Mundo, --- diz ele --- trabalham mais ou menos 20% da população. No Terceiro Mundo, os trabalhadores não chegam a dez por cento. Em suma, dos quase seis bilhões de habitantes do planeta, os considerados trabalhadores não chegam a um bilhão. Os outros cinco bilhões são crianças, velhos, pensionistas e aposentados, donas de casa que cuidam da família, jovens que estudam e pessoas que vivem em busca do que fazer para sobreviver – se pobres – ou tentando matar o tempo – se herdeiros de fortunas”.

Os dados apresentados por De Massi podem ser objetos de questionamentos, mas há que se concordar que o número de desocupados, por certo, ainda supera o de trabalhadores. E com uma classe ociosa cada vez maior, uma grande multidão vive entendiada, enquanto outra, vive extenuada a sustentá-la.
                        A escola, o eterno lugar do ócio, já não é capaz de tornar o ócio das crianças e dos adolescentes algo fecundo e útil. E nesta perspectiva, nasce uma grave preocupação: se o homem não dirigir suas aspirações interiores para o bem, elas se voltarão espontaneamente ao mal.
                        O progresso científico nos reserva tempos cada vez mais ociosos, e por conseguinte, indivíduos mais entendiados. Desta constatação, Domenico de Masi formulou a famosa expressão: “Ócio criativo”; que tende a ser uma máxima corrente de nossa época e para outros: a “partícula de soma” [4] de nossos dias. Por outro lado, se uma vasta classe ociosa se forma nas grandes metrópoles, ainda impera, em certa minoria, uma classe trabalhadora, que tende a diminuir com o avançar das mudanças e com a alienação que suas condições os coloca em face da vasta classe ociosa. Outra tendência observada, é que o conceito de trabalho tende a ser cada vez mais “pejorativado” pela maioria ociosa.
                        Embora todos estejam convencidos da necessidade imprescindível do trabalho físico, ele ainda carrega consigo sentido de encargo penoso, e na prática, é o exercício de tarefas dissipadoras, que priva a muitos da atitude mais criativa e transformadora do homem: a reflexão e o senso crítico, como gostam de acrescentar inoportunamente os marxistas. Excluindo a classe trabalhadora da “partícula redentora” de Domenico de Masi. Pensamos: como um trabalhador extenuado e dissipado por suas longas horas de trabalho poderá ter uma fecunda vida intelectual? Se esta classe não se informa, torna-se joguete da classe ociosa e bem informada a que sustenta com seu suor.
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                        Em nossos tempos já se especula o dia em que o trabalho manual seja exercido exclusivamente por máquinas, onde grandes trabalhos sejam executados em instantes com o simples toque de um botão; e neste cenário previsível, os homens desempenhariam somente atividades intelectuais, – se é que estas também não serão realizadas pelas máquinas. Já no início do século XX, o escritor inglês G. K Chesterton, observava esta estranha tendência da modernidade em seu livro Ortodoxia. Dizia ele:

“Existe o costume de nos queixarmos da correria e do árduo trabalho de nossa época. Mas na verdade, a marca principal de nossa época é uma profunda preguiça e fadiga. O fato é que a verdadeira preguiça é a causa da correria. Tomemos um caso totalmente externo: as ruas são barulhentas, cheias de táxis e carros. Mas isso não se deve à atividade humana, mas sim ao repouso. Haveria menos correria se houvesse maior atividade, se as pessoas simplesmente andassem a pé. O mundo seria mais silencioso se houvesse mais trabalho”.

De fato, esta falsa correria, na verdade é a consequência natural da inercia de homens sentados comodamente dirigindo suas máquinas, que aos poucos passou a cumprir muitas de suas funções orgânicas. A inércia parece e o desejo de se entregar a ela parece ser a força motriz do progresso. Nunca o homem desfrutou de tantas facilidades e tão pouca necessidade de força física e intelectual. Até nas guerras, já são previstas, a substituição de homens por máquinas.
                        São previsões – amedrontadoras para alguns, encantadoras para outros – que o progresso nos reserva. É o destino fatal da humanidade, assegura De Masi. E já que estamos na iminência de ver em breve a concretização de tais episódios, devemos pensar também, em como o homem viverá após a superação de grandes esforços braçais? E o que fará com uma vida que lhes exigirá poucos sacrifícios? E o que restará do homem quando a maioria de suas atividades for realizada por máquinas? Nos preparemos para pensar no advento da era da preguiça e nas suas consequências, que podem ser trágicas.

Notas:
1. do grego, σχολή, que vai dar origem ao termo latino schola, que por sua vez, vai gerar o nosso aportuguesa escola.
2. cf. Aristóteles, Metafísica, Livro I, cap. I
3. Virgilio, Écloga, I, VI
4. Comprimido que causava sensações agradáveis nos personagens da obra fictícia Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley

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